Quarteto Fantástico: 'Primeiros Passos' e o Peso de Ser o Primeiro (Contém Spoilers)

Quarteto Fantástico: Primeiros Passos mergulha no conceito de pioneirismo com o clima retrofuturista, que mistura passado e futuro numa ambientação que parece suspensa no tempo. Não estamos exatamente no presente dos Vingadores. Não estamos no mesmo mundo que conhecemos. A Terra aqui é outra. Estamos numa realidade paralela, onde a tecnologia avançada coexiste com uma estética que remete aos anos 1960.

Essa escolha estética e narrativa levanta perguntas intrigantes, como: que calendário rege a vida desses heróis? A sua linha temporal, mesmo que remeta ao passado, equivale ao "agora" da Terra dos Vingadores? Ou uma viagem entre realidades (entre um mundo e outro) também equivaleria a uma viagem no tempo? Eu acho fascinante… e talvez seja essa justamente a graça de acompanhar os primeiros passos de quem ainda está chegando em um universo que já está em movimento.





"Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" – Marvel Studios / Disney

Com Matt Shakman na direção – o mesmo da premiada minisérie WandaVision (2021) – "Primeiros Passos" não reinventa o gênero, e não me parece interessado nisso. A impressão é de que, em sua abertura, o filme tenta "tomar de volta" aquilo que Os Incríveis usam e abusam em suas animações: inspiração. Além disso, esse novo filme se afasta com segurança do tom que marcou a primeira adaptação dos anos 2000, com Jessica Alba e Chris Evans, optando por algo mais contido, mais maduro – e, talvez por isso, mais interessante.

A decisão de escalar um elenco mais velho reflete isso, e dá profundidade às relações. Reed, vivido por Pedro Pascal; Sue, por Vanessa Kirby; Ben, por Ebon Moss-Bachrach; e Johnny, por Joseph Quinn – não são apenas heróis em ação, mas adultos lidando com conflitos profundamente pessoais. Quando os desafios surgem, o peso não recai tanto sobre o mundo, mas sobre o que está em risco entre eles. Ainda assim, nada é negligenciado. As consequências das escolhas dos heróis reverberam nas pessoas ao redor. E as pessoas desse mundo utópico são intensamente unidas.


"Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" – Marvel Studios / Disney

Outro desvio interessante da fórmula tradicional está no ponto de partida da narrativa. A decisão de começar a história quatro anos após a formação do grupo pode causar estranhamento para quem esperava mais uma origem tradicional, mas funciona. Assim como no Superman de James Gunn, somos jogados no meio da conversa. Cabe ao espectador preencher as lacunas por meio de detalhes, entrelinhas e pequenas elipses narrativas. No caso do Quarteto, esse "resumo" vem através de um programa de TV dentro do próprio universo, que nos contextualiza com leveza, quase em tom documental. No Superman, o mesmo efeito é alcançado com um texto silencioso na tela – remetendo à economia narrativa vista em grandes histórias não-lineares, como na abertura de Star Wars (1977).

Vale ressaltar que o universo de "Primeiros Passos" não é o mesmo dos Vingadores. E essa informação, apesar de sutil, muda tudo. Não se trata apenas de uma linha do tempo alternativa, mas de uma realidade paralela, em que o Quarteto Fantástico é visto não apenas como pioneiro, mas como único. São a "primeira família" em um mundo que ainda está aprendendo o que significa ter heróis. Isso impõe um peso simbólico sobre os personagens, e o filme sabe explorar essa carga emocional com sensibilidade. O que eles representam vai além da ação – é quase uma missão fundacional.

A direção de arte colabora firmemente com essa proposta. A ambientação de época é precisa, mas também inventiva, e acompanha bem a estrutura mais contida do roteiro. Há bastante reação do elenco de apoio, o que faz-se necessário, já que as pessoas desse mundo também são um personagem coletivo, ajudando a tornar crível a justa posição desses heróis que também calham de ser celebridades. 

A trilha sonora de Michael Giacchino (o mesmo de Os Incríveis), embora me pareça menos inspirada do que na animação de 2004, ainda assim acompanha tudo de forma pulsante. E empolga. A primeira missão espacial dos heróis em busca de Galactus (Ralph Ineson) me impressiona – tanto pela harmonia dos elementos audiovisuais em conjunto quanto, principalmente, pela forma como se estende e se integra à sequência de um parto em meio ao caos – o que me lembra, com entusiasmo, a icônica abertura de Star Trek (2009), de J. J. Abrams

A montagem aposta em ritmo econômico, embora não me pareça tão apressada quanto parte da crítica sugeriu. "Primeiros Passos" é um filme que se sente inteiro, mesmo sem ser inflado como muitos filmes mal recebidos da Marvel. Ele entrega o necessário – e talvez um pouco menos do que muitos esperavam.

E é aí que entra a polêmica.


Bastidores de "Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" – Marvel Studios / Disney


Os cortes do novo Quarteto Fantástico

Em conversa recente com Steve Weintraub, do Collider, o diretor Matt Shakman revelou que o filme Quarteto Fantástico: Primeiros Passos tem várias cenas deletadas, incluindo uma sequência com Ben – o Coisa – em um programa de namoro e a participação do vilão que seria interpretado por John Malkovich. Shakman explicou que essas cenas "não estavam finalizadas, principalmente pelos efeitos visuais", e que a decisão de cortá-las foi para garantir que o filme mantivesse sua coesão narrativa.

Sobre a possibilidade de um corte do diretor, o próprio Shakman foi direto: "Tem muitos efeitos visuais envolvidos nessas cenas que continuam inacabadas, então isso não é possível." Ou seja, apesar da pressão de fãs querendo um corte do diretor (um "Shakman Cut"), a versão vista nos cinemas é, por enquanto, a única oficial.


Por que o Doutor Destino não está no novo Quarteto Fantástico?


Victor Von Doom está ausente de propósito. Ainda assim, durante a Conferência das Nações – uma alusão direta à ONU no novo filme –, há uma referência a Latveria, o país de origem do personagem, que, nos quadrinhos, adquire seus poderes de uma fonte mística, diferente da versão cinematográfica dos anos 2000.

A justificativa oficial veio do próprio diretor Matt Shakman, que afirmou em entrevista à Empire Magazine: "Doom não faz parte do meu filme e, portanto, não está sob minha responsabilidade." 

Ele reforça que Doutor Destino consome muito da narrativa e já foi foco de origens em versões anteriores, o que tornaria impraticável incluí-lo sem prejudicar a construção da equipe. Ao escolher Galactus como antagonista central, o filme abre espaço para explorar o Quarteto de forma mais direta e coerente em sua estreia no MCU.

A decisão também segue diretrizes da Marvel Studios, que, como sugere a cena entre os créditos finais, tem planos maiores para o personagem.


* * *


É natural querer ver mais desses personagens, mas não podemos julgar um filme apenas pelo que ficou de fora. O que chegou aos cinemas tem méritos próprios. É conciso, é coeso, e deixa espaço para mais. Nem todo filme precisa ser uma versão estendida disfarçada. Sim, algumas relações poderiam ser mais aprofundadas, especialmente no arco de Ben Grimm. Mas os cortes, mesmo que questionáveis, não comprometem o todo. O filme acerta ao equilibrar tom, visual e drama, oferecendo uma estreia digna para essa nova versão do Quarteto no MCU – uma que me parece aprender com os erros repetidos dos filmes anteriores.

Se cenas adicionais vierem futuramente em uma edição especial, ótimo. Mas o que temos aqui já funciona por si só. E mais importante: emociona.


"Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" – Marvel Studios / Disney

Entre as reinterpretações, não posso deixar de mencionar uma que me chamou atenção de forma especial: me agrada profundamente a performance de Julia Garner como Shalla‑Bal, a Surfista Prateada. Embora o tempo de tela dela seja apenas o necessário, este é sem dúvidas um deleite não só visual. Sua entrada é marcada por uma presença dramática e ameaçadora, daquelas que nos fazem parar, observar e talvez até admirar. Um tipo de antagonismo que convida ao silêncio, não pela força bruta, mas pela imponência serena de quem não precisa gritar para ser temida. Sua presença é contida, mas profundamente simbólica e emocionalmente carregada. E quando explode, sua raiva parece conter séculos de perda e desalento. Ao lado de Sue Storm – que aqui assume um papel maternal –, forma-se uma dualidade interessante: duas mulheres feridas, mas poderosas, que não pedem desculpas por sentir.

Outro aspecto curioso neste novo filme, especialmente em comparação com as versões dos anos 2000, é a reinvenção de Johnny – o Tocha-Humana. Se antes Johnny Storm era retratado quase como um estorvo cômico ou um símbolo de desejo sexual exacerbado, agora ele surge sob uma nova luz. Aqui, vemos um personagem mais introspectivo, ainda carismático, mas atravessado por uma inquietação romântica. Ele parece menos interessado em flertar com as pessoas ao redor e mais fascinado pelo desconhecido do universo, apaixonado pelo espaço e por tudo que ainda não compreende. Seu fogo é, dessa vez, mais cerebral do que corporal; alimentado pela curiosidade e por um senso de missão.

Cheguei a comentar que a escolha de Pedro Pascal não me convencia, especialmente por recear que ele transformasse o personagem em um galanteador barato – o que, felizmente, não acontece. Pascal chega a quase se perder na complexidade do papel: Reed Richards está entre os personagens mais inteligentes de todo o universo Marvel. Mas, diferente de Tony Stark, por exemplo, um gênio egocêntrico e performático, Reed é um gênio introspectivo: socialmente deslocado e muitas vezes emocionalmente frio. Pois, no filme vemos um cientista e inventor brilhante, sempre atento às variáveis... Há um momento específico entre Pascal e Vanessa Kirby que considero crucial para consolidá-lo no personagem. Ali fica claro que estamos diante de um Sr. Fantástico que, justamente por ser como é, pode ferir – ainda que sem intenção.


"Quarteto Fantástico: Primeiros Passos" – Marvel Studios / Disney

Galactus também tem seu tempo de tela e importância bem distribuídos, instigando o senso de curiosidade com precisão. Ele intimida pela escala e pela forma, ambas absurdamente fiéis aos quadrinhos. É monstruoso em proporções épicas, mas, como a própria Surfista, impõe-se sem esforço. Sua presença basta para fazer o Quarteto recuar. Mas não por reverência divina, nem respeito automático diante dessa figura quase incompreensível. Galactus, o devorador de mundos, é uma força da natureza nos quadrinhos: um ser cósmico que consome planetas para manter sua existência. 

Essa dinâmica muda quando ele propõe renunciar à Terra em troca daquele que ainda se forma no ventre de Sue Storm: seu filho com Reed Richards, Franklin, um mutante de potencial praticamente ilimitado, capaz até de criar universos. O próprio Galactus, que já enfrentou entidades cósmicas, reconhece nele uma fonte de poder rara, talvez única, capaz de saciar sua fome eterna. Se num instante o Quarteto recua, no instante seguinte avança. O medo cede espaço ao instinto de sobrevivência.

É a partir desse impulso de sobrevivência, mas também de descoberta, que o filme encontra sua forma. Ao invés de tentar se encaixar de imediato na colcha de retalhos do MCU, "Primeiros Passos" prefere criar sua própria narrativa, mesmo que ainda incompleta. A polêmica dos cortes e dos efeitos inacabados pode prejudicar sua recepção, mas talvez o tempo jogue a seu favor. Afinal, pioneiros raramente são compreendidos de imediato. E aqui, o Quarteto volta a ser o que sempre foi: uma família de exploradores, perdida entre mundos, tentando encontrar sentido no desconhecido.

Nesse cenário anacrônico, considerando que a família de heróis deixa a era FOX para estrear no já cansado Universo Compartilhado Marvel da Disney, o pioneirismo do grupo assume contornos ainda mais dramáticos: ser o primeiro, aqui, não é exatamente um privilégio – é um fardo.

Nenhum comentário: