Valor Sentimental explora afetos tardios com Surpreendente Rigor Cênico e Crítica afiada à Indústria do Cinema Atual

Não é sempre que atendo a cabines de imprensa, mas quando o faço espero exatamente esse tipo de filme. É 8 de dezembro, dez e meia da manhã, e a sala de exibição parece suspensa no tempo. A luz baixa contrasta com a tela branca da Sala 2 do Cine Marquise, enquanto os convidados se acomodam como quem entra num pequeno ritual silencioso. Quando o filme começa, ele nos move por uma paisagem verde que abraça uma casa isolada entre o concreto e a memória. É um início idílico não apenas pelo cenário agradável, mas pela promessa de que aquela casa será mais que arquitetura: será herança, abrigo, e também o campo de batalha emocional de uma família que ainda não conhecemos.
Aqui entra um detalhe precioso: a narração do prólogo revela que, quando criança, Nora Borg, vivida por Renate Reinsve (capa), escreveu um trabalho escolar em que precisava personificar um objeto, e escolheu justamente a casa da família. Ela escreve a casa como se esta fosse um ser vivo que respira e sente o passar do tempo. É dentro desse imaginário infantil, ainda ecoando, que surge Gustav Borg, vivido por Stellan Skarsgård. Um diretor veterano apaixonado pela própria arte, de aparência quase draconiana, como se carregasse uma sombra antiga. No entanto, essa figura soturna logo se desmancha numa tridimensionalidade ímpar, revelada nas pequenas fricções com quem o cerca, expondo um homem frágil, teimoso e, acima de tudo, profundamente humano. E, para nosso deleite, o rigor cênico deste novo filme de Joachim Trier não se limita a esse personagem.
Aqui entra um detalhe precioso: a narração do prólogo revela que, quando criança, Nora Borg, vivida por Renate Reinsve (capa), escreveu um trabalho escolar em que precisava personificar um objeto, e escolheu justamente a casa da família. Ela escreve a casa como se esta fosse um ser vivo que respira e sente o passar do tempo. É dentro desse imaginário infantil, ainda ecoando, que surge Gustav Borg, vivido por Stellan Skarsgård. Um diretor veterano apaixonado pela própria arte, de aparência quase draconiana, como se carregasse uma sombra antiga. No entanto, essa figura soturna logo se desmancha numa tridimensionalidade ímpar, revelada nas pequenas fricções com quem o cerca, expondo um homem frágil, teimoso e, acima de tudo, profundamente humano. E, para nosso deleite, o rigor cênico deste novo filme de Joachim Trier não se limita a esse personagem.
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O desejo de Gustav de fazer um filme com integrantes da família nos move em direções que conversam com o passado distante de sua mãe suicida. Um passado de perseguição nazista, apreensão e tortura, que parece ainda marcar a atual geração adulta dos Borg. Nora é convidada por Gustav, com quem pouco conversa, a viver um papel pensado especificamente para ela em seu filme. Mas existe tensão nas relações entre pai e filhas, especialmente pelo fato de Gustav parecer se importar mais com sua arte e com o "uso" dos entes, do que com os próprios vínculos afetivos. Ou será esse apenas o ponto de vista das filhas.
A irmã de Nora, Agnes (vivida por Inga Ibsdotter Lilleaas), em dado momento reclama que o pai só a considera "o centro do universo" quando isso lhe convém: ele some, volta quando quer, e nunca garante presença. E eu imagino que ela se sinta como um troféu numa estante empoeirada: esquecida, negligenciada; sem a devida atenção que, a essa altura, se perdeu num tempo que não volta mais. E mesmo assim, ele está ali de novo, decidido a filmar sua própria família.
Borg/Pai é distante. Deixa mensagens telefônicas quando está embriagado. É um personagem falho por isso e alcoólatra. Mas termina aí a sua problemática. E o filme faz questão de pontuar isso ao mostrá-lo assim, erguendo um dedo do meio para o suicídio implícito e metalinguístico que cogitou, ou relembrou, durante uma de suas recaídas. Esse suicídio, o da própria mãe, ele ainda incorpora ao roteiro do filme escrito para Nora.
O papel que seu pai escreveu para ela, o qual recusa sem sequer ler o roteiro, funciona como uma negação do próprio pai. Existe um ar de desconfiança das filhas sobre Gustav. Elogios simples da parte dele, como: 'vocês são lindas como sua mãe', retornam para ele em forma de desentendimento cortante: 'Lindas?'. As filhas devem achá-lo raso nesse primeiro contato de um retorno repentino. E ele realmente parece ter passado anos hibernando em algum lugar que não sabemos. A figura de Gustav é, de fato, a que mais se aproxima de um vampiro clássico. Não sei se isso é proposital, mas vindo de Joachim Trier, que ocasionalmente flerta com o fantasioso de forma orgânica em seus filmes, a leitura não parece descabida. Até mesmo aqui, logo no início, na história da casa, narrada sobre o projeto escolar de Nora, já se percebe essa maneira peculiar que Trier tem de envolver o real com um leve toque de imaginação.
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Com a recusa de Nora ao papel escrito para ela, Gustav convida a atriz Rachel Kemp, vivida por Elle Fanning. Uma atriz que, ao longo de alguns ensaios para o papel destinado a Nora, reconhece que talvez não seja a escolha certa para tanto. Ela se encontra com Nora no teatro, sabendo que o papel que estuda foi feito especialmente para ela, e tenta convencê-la a aceitá-lo em seu lugar. Mas ainda em negação, Nora responde que Rachel cometeria um erro de recusar o papel, considerando que o pai é um bom diretor. Rachel vai a casa de Gustav para admitir o receio que tem de frustrar suas expectativas. Ela deseja que Gustav realize o filme certo, com as pessoas certas; como ele realmente o imagina. E Gustave parece absorvido pela responsabilidade de fazer o filme como puder, mesmo que este tenha que sofrer cortes e adaptações linguísticas, considerando a nacionalidade norte-americana de Rachel em detrimento da nacionalidade norueguesa daquela para qual o papel seria originalmente destinado.
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Ao decidir filmar a família Borg, com suas fissuras, cicatrizes e silêncio, Trier parece propor um contraponto: não o espetáculo vazio nem o catálogo vasto de streaming, mas a intimidade complexa de quem cria arte a partir da dor e da memória. O rigor cênico do filme: planos contidos, atuação contida, silêncio denso, é quase um ato de resistência estética. Um lembrete de que o cinema continua sendo um lugar de corpo, voz e história, e não apenas mais um conteúdo distribuído em massa. Um dialogo em especial solidifica o pensamento. Um fotógrafo veterano aposentado e amigo de Gustav está com a saúde debilitada e isso pode ser um problema a forma de negócio atual. 'É assim que funciona?', pergunta o amigo. A resposta de Trier, no entanto, diz o contrário.
Se muitos filmes hoje apostam no consumo rápido, no lançamento digital imediato, no entretenimento "global e genérico", na americanização descabida, Valor Sentimental ousa ser um retorno às raízes dolorosas da linguagem cinematográfica, à dor como matéria e à família como drama real. Esta não é apenas uma história de redenção... É também um manifesto silencioso de fé no cinema como arte vulnerável e necessária.
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Nota do autor: Esta análise pode ser atualizada a qualquer momento. Escrevo sem o filme à disposição para consulta, então alguns diálogos podem não estar literais e certas cenas podem surgir fora da ordem em que as vi na sessão única mais cedo. Ainda assim, espero ter preservado a essência do que o filme realmente me entregou.




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