Sinners: vampirismo como metáfora — e mais o quê?

Vira e mexe voltamos a falar sobre como filmes originais andam sumindo sem deixar rastro nos cinemas, lançamentos originais recentes como "Mickey 17" de Bong Joon-ho, cujo qual gostei bastante, não vingou na bilheteria. Ou o desastre anunciado em live-action de "A Branca de Neve", que tenta alguma originalidade, mas, mesmo assim, também falha miseravelmente. 

É quando ninguém mais espera que surge Sinners, de Ryan Coogler, como uma exceção barulhenta. Um épico original, rodado em película, pensado para ser exibido em IMAX, lançado no mesmo dia em que nos perguntávamos: "para onde foi o risco artístico em Hollywood?" Eis que Sinners responde a altura. Mas ainda não sei qual lacuna do entretenimento ele preenche. À primeira vista, parece o oposto de um filme de super-heróis. Um tipo de Os Vingadores do campo, ambientado quase todo dentro de um celeiro. Mas o que começa como um drama sulista de época, quase teatral, logo escancara seus verdadeiros motivos.





"Sinners" (Imagem: Divulgação)

Divisivo por natureza, Sinners (no Brasil "Pecadores") vem sendo celebrado por público e crítica — um sucesso comercial que já superou seu orçamento milionário — mas ainda assim deixou muitos com gosto de ferro na boca. Porque, gostando ou não, é um filme de crítica social. E não é preciso muito para morder a sua metáfora racial. 

Confesso: fui fisgado como a maioria. Por um bom tempo, achei que estava vendo um dos melhores filmes do ano. Um drama poderoso, com direção precisa, ritmo quase literário e personagens que pareciam respirar fora da tela. Mas então os vampiros chegaram — e com eles, a hesitação. Eu brinco com a ideia de que "se Sinners fosse dirigido por Tarantino, a construção do boteco e o recrutamento de músicos teria um único e claro objetivo: atrair vampiros para caçá-los, de forma deliberada.". Inclusive, por um momento, achei que o filme seguiria por esse caminho — especialmente porque ele começa com a Exposição textual de seu conceito escrito na tela.

Talvez isso tenha sido feito por receio de que a proposta não fosse imediatamente clara ao público geral; talvez seus criadores temessem a perda de interesse antes que o elemento fantástico entrasse de vez na história, mais perto do final. A virada sobrenatural no último terço do filme pode até mudar o jogo, tornar a história mais empolgante, mas isso era esperado por mim justamente por conta da exposição textual. Um incômodo particular, pois, eu sabia um pouco sobre o plot dos vampiros. E o marketing do filme já dava pistas de sobre esse caminho. Então foi menos satisfatória a virada fantasiosa do filme; aproveitei o que mais havia de fantasioso além dos seres noturnos, que, aqui, são mostrados como criaturas vagantes de origem desconhecida, cujo único objetivo é tomar e possuir.

"Sinners" (Imagem: Divulgação)

O que há além disso, em especial, depois da música integrando perfeitamente a história, e que pode até se considerar um musical, é um plano sequência no boteco, envolvendo a música que evoca espíritos ancestrais, como prevê seu conceito, igualmente tomados pela arte, suas origens e influências culturais, mesclas e afins. Isso também conversa com a ideia de apropriação cultural, o que não deixa de ser uma prática (se é que posso chamar assim), "vampiresca". 

Em alguns momentos, especialmente nas cenas em que os vampiros voam silenciosamente sob o céu sulista, é impossível não lembrar de Midnight Mass, de Mike Flanagan. Ambas as obras retratam seus monstros com uma sobriedade que subverte o imaginário popular — não são caricaturas góticas ou criaturas mitológicas exuberantes, mas presenças soturnas, secas, quase reverentes. Em Midnight Mass, o vampiro é confundido com um anjo caído, uma figura sagrada corrompida, fundindo fé e terror de forma ambígua. Já em Sinners, os vampiros carregam outro tipo de transcendência: são herdeiros de uma violência racial e histórica. Em ambos os casos, o terror não vem apenas do sobrenatural, mas do que esses seres revelam sobre os humanos que os acolhem.

O curioso sobre a origem incerta dos vampiros, neste caso, é que quando vemos Remmick (imagem), interpretado por Jack O'Connell, pela primeira vez, parece que ele caiu de algum lugar...

O que, no entanto, Sinners preserva da lenda — e de forma intrigante — é a clássica regra dos vampiros: eles só entram se forem convidados. Essa condição me remete a Deixe Ela Entrar, romance sueco de John Lindqvist, e adaptado para o cinema por Tomas Alfredson em 2008, com uma versão americana (Let Me In, 2010) por Matt Reeves. Em todas as versões, o convite (que é uma crença comum dentro do imaginário popular sobre vampiros, fortemente ligada ao folclore europeu), carrega peso simbólico: mais do que permissão física, ele representa um pacto emocional, uma rendição. A ideia é que, ao serem convidados, os vampiros ganham um tipo de "direito" de entrar, o que representa o consentimento ou a abertura para a corrupção e a violência que eles trazem. Sinners bebe dessa fonte, mantendo o mito vivo e vezes desconcertante.

"Sinners" (Imagem: Divulgação)

Em uma das cenas mais marcantes, os vampiros se reúnem em roda, cantando e dançando ao som de uma balada folclórica irlandesa. A canção, entoada por todos os que já foram mordidos, sugere que ninguém está a salvo — nem mesmo aqueles de origens historicamente oprimidas escapam da lógica da dominação. A roda, que em outras culturas poderia simbolizar comunhão e ancestralidade, aqui se converte numa dança ancestral corrompida: uma coreografia da contaminação cultural e ideológica, onde todos, mais cedo ou mais tarde, são convertidos ou consumidos. A música talvez sugira algo nesse sentido, o que não sei.

Esses momentos nos ajudam a questionar o gênero, sobretudo a nossa relação com o poder. Os vampiros não são apenas monstros — são símbolos de um sistema que suga até o último suspiro de quem ousa sobreviver fora das regras impostas. Algo que os primos, vividos, ambos, por Michael B. Jordan, desejam desde o começo do filme. Eles roubam cerveja, vinho, dinheiro da máfia. Tocam o terror em Chicago, entre bordéis, jogatinas e alianças criminosas. Querem poder — e, mais do que isso, querem fazer à sua maneira. Sack é o mais cruel, abandona Mary (Haley Steinfeld) sem pensar duas vezes. Smoke, com seu passado de perda e família quebrada, talvez tenha algo de mais humano. Mas nenhum dos dois é herói. Eles são o mal que volta para casa, corrompendo até o primo pregador, Sammy. Porque família, cultura, comunidade — tudo isso, para eles, é apenas mais uma forma de exploração.

"Sinners" (Imagem: Divulgação)

Ou seja, aprofundando ainda mais em seu conceito, é certo dizer que os vampiros não são exatamente uma metáfora sutil. Eles são o resultado direto das escolhas feitas por personagens que abandonaram suas raízes em troca de poder individual. Vampirismo aqui não é só uma maldição, mas uma ideologia. Uma que troca cultura por capital, espiritualidade por status, comunhão por ambição. Ambientado no sul dos EUA durante o regime segregacionista de Jim Crow, o filme basicamente acompanha três primos negros: Smoke, Sack e Sammy. Os dois primeiros deixam o campo e a cultura comunitária para tentar a sorte (e o dinheiro fácil) em Chicago. Mas ao voltar para casa, não trazem só dinheiro sujo — trazem uma praga. Chicago vira o “pecado original” da narrativa. Uma cidade que representa tanto a liberdade quanto a corrupção. E o contraste entre ela e o campo é mais do que geográfico: é filosófico.

O visual também merece destaque. Rodado em película e projetado para IMAX, este não tem a estética de filmes digitais lavados. É escuro, sim, mas essa escuridão é intencional, carregada de significado. Não é uma escuridão que esconde — é uma que revela o que realmente importa. Cada enquadramento parece dialogar com o cinema de John Carpenter, especialmente O Enigma de Outro Mundo e Príncipe das Sombras: grupos isolados, ameaçados por forças incompreensíveis, em um espaço limitado onde a paranóia toma conta.

No fim, Sinners não nos oferece uma resposta fácil — apenas um espelho sombrio. Em sua mistura de história e horror, o filme sugere que monstros reais não precisam de presas para nos devorar: basta que sigam as regras de um mundo que já nasceu corrompido. Os vampiros aqui não são apenas brancos — o principal deles é irlandês, com seu próprio histórico de marginalização. O filme escapa da armadilha de transformar racismo em fantasia genérica. Ao contrário, ele amplia a metáfora, apontando que o mal não tem uma cor única, mas uma estrutura. A de um sistema que transforma vítimas em predadores. E que, muitas vezes, esconde seus dentes por trás de sorrisos e cifrões.


Trailer Oficial #2 Dublado


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