HyperNormalização: A Mentira que Aceitamos para Não Enlouquecer (um ensaio sobre o doc ou uma desculpa para sair do script)

Dia desses, no meu TikTok, vi um filósofo conceituado repetir a frase “as coisas são como elas são” — e algo dentro de mim simplesmente rejeitou essa ideia. Unindo isso a ideia defendida no documentário HyperNormalisation (capa), me perguntei: será possível que nem mesmo alguém tão conceituado cogite a hipótese de estarmos vivendo dentro de uma grande mentira?
Dirigido por Adam Curtis, HyperNormalization diz que "vivemos em um mundo onde os poderosos nos enganam. Nós sabemos que eles mentem. Eles sabem que nós sabemos que mentem. Eles não se importam. Dizemos que nos importamos, mas não fazemos nada e nada muda.". O conformismo de uma pessoa tão conceituada, o filósofo citado no enunciado, deveria te preocupar, portanto, não? É o que eu sinto.
O que isso nos revela é brutal, principalmente no âmbito social: o sistema de mentiras em que vivemos depende diretamente do nosso silêncio para funcionar. Ele se alimenta da nossa “paz” conquistada pela omissão, do conforto ilusório de não confrontar o absurdo — mesmo quando esse absurdo nos dilacera por dentro. Revela que a mentira não é apenas imposta de cima para baixo; ela é sustentada também por nós, socialmente subjugados, em pequenas escolhas diárias de conformidade, quando confundimos sobrevivência com integridade. No fim, a paz que não exige confronto talvez seja apenas uma resignação, bem maquiada.
O contexto da conversa também sugere que essa história de energia limpa e missão salvadora da humanidade sempre foi só uma fachada – um personagem vendido como gênio revolucionário, quando na verdade… bom, um baita babaca. E durou. Durou dez anos ou mais. O mais trágico, talvez, é que mesmo com tudo isso sendo exposto, o mercado continua. A farsa funciona. Como se estivéssemos todos hipnotizados por um espetáculo que nem sequer sabemos mais por que começou. Tesla? Não é uma empresa de carros. É um esquema de imagem. De fé. E de grana, claro.
Quando eu vejo artistas ou pessoas minimamente influentes, viajando para a atmosfera da Terra, sei que também é marketing. Mas algo chama atenção em 2022, quando o ator de Star Trek, William Shatner, volta da atmosfera com o discurso de que precisamos cuidar da Terra, porque não há outra alternativa sendo que o espaço é um lugar hostil. Em matéria ao npr, no mesmo ano, ele conta que enquanto esteve lá em cima sentiu tristeza. “Não sabia por que estava chorando. Precisei ir para algum lugar, sentar e pensar: o que há de errado comigo? E então percebi que estava de luto.” Aquilo não foi uma performance. Foi o overview effect, um choque de consciência que só quem vê a fragilidade do planeta do lado de fora consegue sentir. As lutas que travamos aqui, a forma que mal tratamos o nosso planeta, a tristeza genuína de Shatner rompeu o script. Por isso chamaram a Katy Perry em seguida?
Ou será que, mesmo sabendo disso, ele — que é conhecido o bastante para dar palestras motivacionais em empresas, apesar de ser crítico feroz do gênero "autoajuda" — não passa de mais um entre tantos no topo, conformado, que escolhe frases de consolo como aquela? Não me convence. Eu diria que "se as coisas são como elas são é porque, em algum momento, nos conformamos com as ideias." Mas logo surgem as perguntas: qual a origem disso? Em que momento nos conformamos sem nem perceber? É onde entra a HyperNormalização.
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Documentário completo
Você já deve ter sentido que algo muito errado está acontecendo, mas não sabe exatamente explicar o quê. Você chega a se perguntar – é como se, por um momento, estranhamente desagradável, você saísse de uma realidade e passasse a vislumbrar uma outra. Algo parece te puxar para fora de uma fenda no espaço-tempo, mas não dura: a mentira do seu cotidiano é, a essa altura, imensamente mais cômoda — então você volta. O que quer que estivesse do outro lado da fenda, puxando, não tem força suficiente para sustentar tamanha verdade.
Você, inclusive, já deve ter se perguntado por que todos parecem agir como se nada estivesse acontecendo, por que ninguém parece reagir efetivamente contra um sistema em completa desordem, pois é evidente que ninguém sabe o que está fazendo. O atendente enquanto te atende está aprendendo a te ajudar, o supervisor simula liderança enquanto improvisa, a propaganda promete o que nem sabe se poderá entregar, o influenciador finge ter certeza sobre temas que acabou de conhecer, o político ensaia indignações programadas, o autor premiado frequentemente ocupa um lugar ambíguo: é celebrado por dizer verdades incômodas em forma de arte ou literatura, mas muitas vezes também é integrado ao próprio sistema que critica, e até poucos dias atrás os votantes do Oscar não eram obrigados a ver todos os filmes concorrentes antes de votar... A lista de omissões e de mentiras continua, mas você consegue ter a noção?
Artistas no geral tendem a denunciar as rachaduras no "prédio" social, mas raramente sugerem uma saída concreta – e , em certos casos, seu reconhecimento oficial já é parte da normalização da crítica. Assim, mesmo sua denúncia pode se tornar espetáculo domesticado, incorporado ao teatro da mentira. E o sistema, por trás de tudo, cultiva essa ilusão de competência para não desmoronar de vez. É mais cômodo ignorar o fato de que o prédio está rachado, cobrindo suas paredes com pinturas. Será que mentiram por tanto tempo que passaram a acreditar?
Imagine viver em um prédio prestes a desabar, onde todos sabem que as paredes estão rachadas, as janelas estão caindo, mas continuam decorando o salão para o próximo baile. Agora, imagine que isso não é um pesadelo — é o nosso cotidiano; a sensação de desconexão com a realidade à qual fomos submetidos, e continua, dia após dia, explica o uso do conceito. Mas é mais seguro não pensar nisso, mais cômodo seguir um roteiro do qual desconfiamos a autoria. Sempre foi assim: "quem erra, paga.". É assim que as coisas funcionam. Ou estou enganado?
Por muitos anos, mantive minha paz ao evitar confrontar nomes, evitando o caos. Mas, ao refletir, percebi que, talvez, não estivesse mantendo minha paz, mas sim minha conformidade. Eu era cúmplice de uma grande mentira institucionalizada que me esfaqueava pelas costas todos os dias? O que isso revela, afinal, sobre o sistema de mentiras no qual o documentário sugere que estamos todos imersos? Questiono ainda mais a fundo: "você realmente acredita que eu assisti ao documentário antes de escrever esse ensaio?"
Em verdade, o documentário é uma desculpa para eu falar sobre o termo, criado em 2005 pelo antropólogo e escritor russo Alexei Yurchak no livro: "Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation". Eu assisto ao documentário depois de escrever boa parte desse ensaio. E ele traça, basicamente, de forma crua e visceral, o jogo falho de cartas político que levou aos ataques do 11 de Setembro.
Enquanto homens brincavam de poder, a narrativa de suas vidas era moldada publicamente, mas isso não deu certo para nenhum dos lados; todos perderam, inclusive a população. Documentos sobre aparições de OVNIs, por exemplo, eram forjados pelo próprio governo dos Estados Unidos no intuito de manipular a percepção pública por meio de desinformação intencional, em especial durante a Guerra Fria e mais tarde — uma prática próxima da "guerra de percepção"(perception management ou non-linear warfare), que também aparece associada à Rússia no documentário – um método de ataque com truques de descontrole de percepção contra os rivais para gerar confusão de julgamento.
Recentemente repercutiu um vídeo, envolvendo Vivian Wilson, filha transexual renegada do bilionário Elon Musk, onde ela desmonta a imagem do pai. No vídeo, do TikTok @/hasanabi_uncensored – cuja fonte deixo abaixo –, a pauta abordada é a colonização de Marte, para a qual ela diz: "colonizar Marte é uma mentira de marketing. Sabe quanto tempo levaria para terraformar Marte? Quanto tempo para realmente tornar aquele planeta minimamente habitável?" Ela sugere que isso nunca foi um plano real – é só um enredo de ficção científica disfarçado de futuro promissor. E o mais assustador: todo mundo acreditou. Caíram na lábia de um cara que "vende futuro", mas que, na prática, empilha empresas e discursos como quem joga SimCity em modo Deus.
O contexto da conversa também sugere que essa história de energia limpa e missão salvadora da humanidade sempre foi só uma fachada – um personagem vendido como gênio revolucionário, quando na verdade… bom, um baita babaca. E durou. Durou dez anos ou mais. O mais trágico, talvez, é que mesmo com tudo isso sendo exposto, o mercado continua. A farsa funciona. Como se estivéssemos todos hipnotizados por um espetáculo que nem sequer sabemos mais por que começou. Tesla? Não é uma empresa de carros. É um esquema de imagem. De fé. E de grana, claro.
Quando eu vejo artistas ou pessoas minimamente influentes, viajando para a atmosfera da Terra, sei que também é marketing. Mas algo chama atenção em 2022, quando o ator de Star Trek, William Shatner, volta da atmosfera com o discurso de que precisamos cuidar da Terra, porque não há outra alternativa sendo que o espaço é um lugar hostil. Em matéria ao npr, no mesmo ano, ele conta que enquanto esteve lá em cima sentiu tristeza. “Não sabia por que estava chorando. Precisei ir para algum lugar, sentar e pensar: o que há de errado comigo? E então percebi que estava de luto.” Aquilo não foi uma performance. Foi o overview effect, um choque de consciência que só quem vê a fragilidade do planeta do lado de fora consegue sentir. As lutas que travamos aqui, a forma que mal tratamos o nosso planeta, a tristeza genuína de Shatner rompeu o script. Por isso chamaram a Katy Perry em seguida?
Há um incêndio no interior de um teatro. O palhaço sobe ao palco para avisar o público. Eles pensam que é uma piada e aplaudem. O palhaço repete e é aplaudido com mais entusiasmo. É como eu penso que o mundo chegará ao seu fim: sendo aplaudido por testemunhas que acreditam que tudo não passa de uma piada.
Falando em literatura, mais ainda especificamente de não-ficção, o que adoro, a expressão HiperNormalização, criada pelo antropólogo russo, nasceu da observação do colapso disfarçado da União Soviética — um período em que a mentira institucionalizada era tão aceita que se tornava a única verdade possível, mesmo quando todos sabiam, lá no fundo, que nada mais fazia sentido; até quem comandava sabia que tudo era uma farsa. Mas como não havia alternativa clara, fingir que tudo ia bem virou a única forma de sobrevivência. A mentira ficou tão grande que deixou de ser mentira — e se tornou o novo normal.
Décadas depois, o conceito encontrou um novo lar: o nosso mundo. Vivemos numa era em que realidades simplificadas são vendidas como verdades absolutas. Líderes prometem soluções mágicas para problemas complexos. Grandes corporações mascaram crises existenciais com campanhas publicitárias vibrantes. E nós, aqui embaixo, seguimos — não porque acreditamos plenamente, mas porque, em alguma camada da nossa consciência, aceitamos que talvez seja mais suportável fingir normalidade.
A HiperNormalização não é feita de vilões caricatos nem de conspirações óbvias. Ela se constrói no detalhe: na notícia que escolhemos não checar, na indignação que dura meses ou anos, na certeza confortável de que "não é problema meu". É um pacto silencioso, no qual a complexidade da vida real é substituída por narrativas digeríveis — e todos nós, em algum grau, fazemos parte desse acordo. A grande pergunta é: Será que ainda sabemos reconhecer o que é real? Ou já aceitamos de vez o cenário pintado para nós, apenas porque é mais fácil dançar no salão do que encarar suas rachaduras?
É esperado de nós que briguemos e reivindiquemos as mais insignificantes melhorias — como se essa fosse nossa função na sociedade — enquanto o sistema, em sua essência, permanece inalterado? Sabemos que nem todos no poder possuem conhecimento de tudo o que há de errado na sociedade, cabendo a ela apontar e reivindicar melhorias. Causa após causa, o jogo continua: uma sensação constante de avanço simbólico, mas estagnação real. E quanto mais nos engajamos em disputas linguísticas, rótulos, micro-vitórias, mais o sistema se adapta, se reforça e se esconde atrás de uma aparência de escuta e inclusão que, no fundo, só serve para nos manter ocupados enquanto tudo desaba em câmera lenta.
Mas esse é apenas o conceito de uma palavra inventada num livro, posteriormente desenvolvida no documentário bruto sobre a tentativa falha dos Estados Unidos de impor uma ordem simplificada ao mundo.
Ou seria a mais pura verdade?
O documentário também se debruça sobre algo curioso e perturbador: o lado sombrio que motivou a criação e o uso massificado da internet. Após os ataques do 11 de Setembro, os EUA intensificaram a vigilância em nome da segurança nacional, chegando ao ponto de baixar dados de webcams de cidadãos comuns, na esperança de encontrar terroristas. Mas tudo o que encontraram foi um mar de solidão e desejo — pessoas usando suas câmeras para exibir partes íntimas em chats e fóruns com temática sexual. Ao invés de uma rede de ameaças, descobriram uma rede de carências. A promessa da internet como uma ferramenta de conexão se revelou, ali, uma vitrine do vazio.
O meu Instagram pessoal também já ficou bastante habitado e cheio de vida. Eu gravava todos os eventos e passeios que fazia pela cidade. Mas, durante a pandemia, ou um pouco depois do fim da quarentena, eu desativei a conta. Eu estava decidido, assim como fiz com o Facebook anos atrás. O meu motivo era a sobrecarga. Eu me cobria de responsabilidades que nem mesmo existiam. Tempos depois, mais recentemente, reativei a conta e foi como começar do zero. Voltei porque surgiu a oportunidade de estudar em uma escola que exige presença online. Mas, pensando bem, isso me faz perceber que estamos mesmo sendo constantemente vigiados.
Na internet, me parece ser muito fácil de ser levado pela corrente, perder a si mesmo, quando não há auto-controle e, principalmente, auto-respeito. Você já deve ter se perguntado por que alguns artistas não estão nas redes sociais... sendo as suas desculpas as mais diversas, apelando desde a insegurança pessoal a preocupação com a sua privacidade. Ou por que um artista engajado na mídia falaria a verdade, arriscando tudo o que conquistou ao longo dos anos se omitindo, escondendo-se atrás dos seus trofeus e tempos de glória. Deve ser mesmo muito mais difícil para quem acredita ter alcançado algum status na vida, mas o quanto desse sucesso veio em detrimento de outras pessoas?
E àqueles que falam sobre estar “acordado” (“woke”), isso também me faz rir. Pois, podemos notar, pela HyperNormalização, que o termo woke se tornou mais uma narrativa digerível; absorvida por um sistema que neutraliza mudanças reais ao incorporar a crítica. Seguindo a mesma lógica, ideias que nascem como disruptivas acabam domesticadas, repetidas por corporações, políticos e mídias que utilizam tais discursos para manter a aparência de transformação, enquanto tudo essencialmente continua igual. Ou seja, ser “woke” pode virar apenas mais uma decoração no salão rachado.
No fim, o sistema de mentiras se alimenta não somente da nossa omissão, mas, sobretudo, da nossa reatividade e presença constante. Em outras palavras, o termo "stay woke", com raízes legítimas no ativismo negro norte-americano, alertando para injustiças raciais, com o tempo, sofreu apropriação pela publicidade, por empresas e por influenciadores, transformando-o numa espécie de selo de virtude, esvaziando o sentido original. A HyperNormalização age aqui como um filtro: transformando revolta em estética, e causa social em marketing. Em vez de questionar o sistema, a linguagem woke às vezes serve para torná-lo mais palatável — desde que ele não precise mudar de verdade.
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filha de musk sobre musk:
https://www.tiktok.com/@hasanabi_uncensored/video/7487097133867257119
um dos melhores vídeos sobre o outro lado de musk que poucos falam a respeito:
https://www.youtube.com/watch?v=riX2Ww80Ow0&list=LL&index=132&t=60s
npr reportagem com ator de star trek:
https://www.npr.org/2022/10/23/1130482740/william-shatner-jeff-bezos-space-travel-overview-effect
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