'São Paulo Sociedade Anônima' é exibido em cópia restaurada no retorno do Cineclube Biblioteca Mário de Andrade

É 30 de outubro. A sessão especial de São Paulo Sociedade Anônima (1965), exibida gratuitamente na Biblioteca Mário de Andrade pelo Circuito Spcine, resgatou mais do que um clássico: devolveu à cidade o espelho de sua própria inquietude. O filme, dirigido por Luiz Sergio Person, e inédito para mim, foi restaurado em 4K e apresentado por Marina Person (cineasta e filha do diretor). Essa cópia reaparece em estado de lucidez, reabrindo a ferida urbana que São Paulo insiste em esconder sob o concreto do progresso.
O longa, que acompanha o percurso de Carlos (Walmor Chagas), engenheiro dividido entre o casamento, os desejos e o ritmo frenético da industrialização automobilística, traduz um tempo em que o crescimento da metrópole já pulsava, mas ainda guardava um certo ar de novidade. A cidade pulsa, seus prédios e pessoas em movimento incessante, e embora o surto industrial já tenha desabrochado, nota-se uma diferença que salta aos olhos: nos letreiros e outdoors, nos nomes das lojas – mas, ao mesmo tempo, no centro, junto ao Viaduto do Chá, à Praça da Sé ou à Praça Roosevelt, edificações que já se reconhecem, dispostas como testemunhas de um crescimento ainda em curso; nos nomes das lojas, no gerador de energia, que carregam a inocência de uma era anterior à pressa digital.
A fotografia em preto e branco, longe de empalidecer a cidade, revela uma São Paulo que se desvela em contrastes: viva, labiríntica, vezes reconhecível, quase inacabada ou não. Poucos filmes, como esse, me parecem conseguir captar a difícil beleza de uma cidade que raramente se deixa filmar com dignidade. Particularmente, acredito ser um trabalho árduo transformar São Paulo em imagem poética. Não por falta de ícones, mas pelo modo como a pressa e o excesso costumam achatá-la nas representações televisivas modernas.
Aqui, a câmera de Ricardo Aronovich percorre os mesmos espaços sem ceder ao óbvio. Há um rigor quase documental nos enquadramentos, mas também um lamento silencioso e poético neles: o da cidade que cresce sem saber para onde vai, e do homem que tenta acompanhá-la, até o esgotamento. Aronovich transforma o caos urbano em uma coreografia de luz e sombra, onde até o trânsito parece coreografado pela melancolia. O horizonte repousa no alto do enquadramento; abaixo dele, o chão de paralelepípedos de um bairro anônimo paulistano, indecifrável em sua familiaridade; entre outras formas de olhar a cidade.
Na grande tela, o filme recupera sua dimensão de manifesto e melancolia. Mas, longe de ser um manifesto da classe operária, por exemplo, Person não filma o operário como sujeito coletivo, mas a alienação do indivíduo perdido na engrenagem do capitalismo industrial nascente. Assistir à projeção na Biblioteca Mário de Andrade, entre as colunas e livros que guardam a memória paulistana, faz ecoar o próprio espírito do filme: o de uma cidade feita de concreto e lembrança. Sob a curadoria afetiva de Marina Person, a sessão não foi apenas um reencontro com a obra, mas com a própria São Paulo, essa personagem anônima, que não se exibe em cartões-postais óbvios, mas se insinua nas calçadas gastas, nos anúncios desbotados e nas multidões que se confundem entre o trabalho e o sonho. É nela, e não sobre ela, que o filme acontece.
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Imagino que a cópia restaurada em 4K de São Paulo Sociedade Anônima ainda percorra festivais e mostras especiais, abrindo caminho para que o filme reencontre novos olhares; tanto os entusiastas quanto os estudiosos do cinema brasileiro. No Brasil, é provável que siga sendo exibido em sessões dedicadas à revisão de obras fundamentais do nosso audiovisual, onde sua força estética e histórica continua a reverberar.
Não há, ao que tudo indica, planos imediatos de lançamento comercial, seja em streaming ou em edições físicas, como uma edição em Blu-ray, por exemplo. Ainda assim, a restauração o coloca em uma nova condição: a de poder circular em outros espaços, como cinematecas, universidades ou plataformas que acolhem o patrimônio do nosso cinema.
Francisco P. Neto
Criador e editor do CaroCineasta.
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