A ousadia inicial de 'Inheritance' me fisgou mesmo vindo de um diretor sem identidade criativa própria (Comentário)
Dirigido por Neil Burger e co-escrito por Olen Steinhauer, em Inheritance ("A Herança" no Brasil) conhecemos Maya (Phoebe Dynevor) como uma cleptomaníaca de mão cheia, descobrindo que seu pai (Rhys Ifans) foi um espião. De repente, ela se vê no centro de uma conspiração internacional. Em sua busca por respostas, Maya se torna alvo e precisa viajar pelo mundo dominando as habilidades do pai e desvendando os mistérios do passado dele nesse suposto "thriller eletrizante de espionagem", o que me leva a assistir...
Dynevor, já conhecida por Fair Play e Bridgerton, encontra aqui um terreno que se pretende mais sombrio, onde charme e falha de caráter se confundem, e onde o simples ato de roubar acaba funcionando como prólogo para um mergulho em águas supostamente mais turvas. É nesse ponto que a trama dá um giro: a morte de uma matriarca abre espaço para a figura paterna da protagonista, Sam, que se revela nada menos que um ex-espião internacional. Esse detalhe não vem como uma lembrança distante, mas como um fardo hereditário, que cai sobre Maya com o peso de um dossiê confidencial.
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"A felicidade nunca diminui por ser compartilhada." (A única frase do filme que me marcou, mas que também não faz ligação com absolutamente nada.) |
A câmera de Burger gosta de Maya, é severamente íntima dela e dos acontecimentos a sua volta; não apenas a observa, mas a espreita com a cumplicidade de quem divide um segredo sujo, aproximando-se a ponto de tornar cada movimento quase uma confissão. A câmera se recusa a ser passiva: invade, persegue e por vezes viola a cena, como se fosse um personagem invisível testando os limites da narrativa. Esse gesto inicial, despretensioso e quase amador em sua textura, me pegou desprevenido. Não pela falta de refinamento, mas pela sensação de que alguém ousou desestabilizar o espaço seguro do thriller tradicional – mesmo em um terreno já explorado por marcos sólidos como A Supremacia Bourne, por exemplo.
Gravado inteiramente em iPhones, o filme apela ao tom de cinema de guerrilha... nada que se compare ao sucesso recente de Tangerine, quiçá à inventividade de Enter the Void e à câmera espiritual de Gaspar Noé. Pois essa não é a proposta aqui, mas eu cheguei a pensar que fosse. O que Inheritance carece de narrativa, também falta em ambição técnica. Mas o que soa como escolha criativa proposital, vezes perde valor e não se justifica (destilo um pouco mais sobre isso na Nota Crítica abaixo). É um filme que só me move a escrever sobre ele, porque eu esperava/queria me importar...
Em certos momentos, Inheritance me desperta ecos de obras como Rosetta (1999), Cisne Negro e The Girl with the Dragon Tattoo (2011), pela forma como coloca sua protagonista em um estado constante de exposição e fragilidade, ao mesmo tempo em que a envolve em mistérios maiores que ela mesma. Mas talvez a comparação mais inevitável eu gostaria que fosse com a saudosa série Homeland – aquela sensação de trama global e paranoia política sempre à espreita. A diferença é que aqui a seriedade e o senso de urgência se diluem, perde força em vez de ganhar: a câmera na mão, que poderia intensificar o suspense, às vezes mais dissipa a tensão do que a sustenta. Ainda assim, a escolha confere uma despretensão estética rara em thrillers do gênero, quase como se o diretor tivesse abraçado a imperfeição como linguagem.
É interessante notar como o voyeurismo da câmera de Burger acaba encontrando um encaixe quase natural no gênero da espionagem. Em determinadas sequências externas, paira a dúvida se aquelas pessoas ao fundo foram de fato figurantes dirigidos ou transeuntes captados sem aviso, e essa ambiguidade reforça a atmosfera de desconfiança da qual esse gênero tanto precisa. Ao mesmo tempo, alguns personagens surgem como se fossem parte orgânica da ambientação, confundindo nossa percepção entre quem é peça dramática e quem poderia muito bem ser um CPF ou profissional real daquele local. Esse jogo de incertezas, ainda que não seja sempre proposital, adiciona uma camada de autenticidade que conversa diretamente com a sensação de estar sendo observado, seguido ou manipulado.
Falando nele, Burger é um diretor difícil de enquadrar. De seu maior sucesso de crítica O Ilusionista a Amigos Para Sempre (a versão hollywoodiana do francês Intocáveis), passando pelo inusitado Sem Limites (2011) e Divergente, seu currículo soa como uma colagem de estilos emprestados, mas sem a assinatura de alguém que dita tendências. É o tipo de cineasta que transita por diferentes gêneros sem se fixar em nenhum, e por isso mesmo se torna inconsistente aos olhos de quem busca identidade autoral. Confesso que pouco acompanhei sua filmografia e, sendo honesto, nem sei se preciso correr atrás dela: os títulos que compõem sua carreira os quais já conferi não ficaram marcados na minha memória, nem fizeram ligação com ele, e talvez isso já diga muito. Mas Inheritance chama a minha atenção, pois, como sempre gosto de frisar, adoro trama de espionagem.
A premissa nesse caso até desperta a minha curiosidade, mas o roteiro se mostra superficial logo na primeira metade do filme, transformando a trama em uma sequência de perseguições que raramente levam a algum lugar. Por mais que a ousadia estética, o cinema de guerrilha e o uso do iPhone criem proximidade e tensão, nada disso consegue compensar a falta de substância e a construção rasa dos personagens. Dynevor até entrega seu papel, mas não há roteiro que permita a ela brilhar além da repetição de aventuras globais que pouco envolvem.
Parece até ironia um thriller de agentes secretos nascer das mãos de um cineasta sem identidade criativa própria.
É interessante notar como o voyeurismo da câmera de Burger acaba encontrando um encaixe quase natural no gênero da espionagem. Em determinadas sequências externas, paira a dúvida se aquelas pessoas ao fundo foram de fato figurantes dirigidos ou transeuntes captados sem aviso, e essa ambiguidade reforça a atmosfera de desconfiança da qual esse gênero tanto precisa. Ao mesmo tempo, alguns personagens surgem como se fossem parte orgânica da ambientação, confundindo nossa percepção entre quem é peça dramática e quem poderia muito bem ser um CPF ou profissional real daquele local. Esse jogo de incertezas, ainda que não seja sempre proposital, adiciona uma camada de autenticidade que conversa diretamente com a sensação de estar sendo observado, seguido ou manipulado.
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"Inheritance" (2025) – IFC Films / Imagem de divulgação |
Falando nele, Burger é um diretor difícil de enquadrar. De seu maior sucesso de crítica O Ilusionista a Amigos Para Sempre (a versão hollywoodiana do francês Intocáveis), passando pelo inusitado Sem Limites (2011) e Divergente, seu currículo soa como uma colagem de estilos emprestados, mas sem a assinatura de alguém que dita tendências. É o tipo de cineasta que transita por diferentes gêneros sem se fixar em nenhum, e por isso mesmo se torna inconsistente aos olhos de quem busca identidade autoral. Confesso que pouco acompanhei sua filmografia e, sendo honesto, nem sei se preciso correr atrás dela: os títulos que compõem sua carreira os quais já conferi não ficaram marcados na minha memória, nem fizeram ligação com ele, e talvez isso já diga muito. Mas Inheritance chama a minha atenção, pois, como sempre gosto de frisar, adoro trama de espionagem.
A premissa nesse caso até desperta a minha curiosidade, mas o roteiro se mostra superficial logo na primeira metade do filme, transformando a trama em uma sequência de perseguições que raramente levam a algum lugar. Por mais que a ousadia estética, o cinema de guerrilha e o uso do iPhone criem proximidade e tensão, nada disso consegue compensar a falta de substância e a construção rasa dos personagens. Dynevor até entrega seu papel, mas não há roteiro que permita a ela brilhar além da repetição de aventuras globais que pouco envolvem.
Se em outros trabalhos a filmografia do diretor parece uma colagem de gêneros, aqui ao menos existe a fagulha de um risco criativo, ainda que desordenado. Não é genialidade, mas é ruído o bastante para me fazer querer me importar. Ainda assim, Inheritance (atualmente disponível para aluguel) se apoia em uma ousadia inicial que não passa despercebida. É justamente por isso que o filme chama minha atenção, mesmo vindo das mãos de Burger, um diretor que nunca consolidou um estilo ou marca autoral reconhecível.
* * *
Nota Crítica:
Parece até ironia um thriller de agentes secretos nascer das mãos de um cineasta sem identidade criativa própria.
Além disso, Inheritance desperta em mim o seguinte questionamento: que tipo de gênero realmente se beneficia da câmera na mão? Não necessariamente o uso de iPhones, mas o gesto de filmar com baixo orçamento, em locações reais, aceitando o improviso do acaso.
Quando essa escolha vem de cineastas que nasceram no terreno da guerrilha, ela soa autêntica, quase visceral. Pois é a única opção técnica que têm em mãos, literalmente! Mas quando surge de um diretor já estabelecido dentro do cinema tradicional e vinculado a grandes estúdios, essa aventura repentina ao improviso me soa desesperada (para não falar falsa e oportunista), mais como um experimento de vitrine do que como uma necessidade narrativa real.
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