PLURIBUS e o preço da autenticidade em um mundo contaminado pelo vírus da paz (Comentário com Spoiler)

Terminei o terceiro episódio de Pluribus com uma satisfatória sensação de identificação. Porque, assim como Carol (essa mulher emocionalmente esfolada, que anda pelo mundo como quem pisa em cascalho), eu também tenho certeza de que o meu temperamento derreteria muita gente por aí. Não por bravata. Por fricção mesmo. Por inadequação a esse consenso higienizado que as pessoas defendem como se fosse virtude: a tal "paz".

E que roteiro! Vince Gilligan (criador de Breaking Bad) sempre teve uma queda por personagens que sangram por dentro, mas aqui ele parece particularmente interessado em expor a ferida: Carol (Rhea Seehorn) é uma autora que despreza o próprio trabalho, cercada por um mundo que funciona numa lógica de gesso emocional, onde todo mundo é "bom demais". E isso, claro, é o presságio perfeito para o horror.





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O vírus da paz – como acredito que posso chamar com base nos primeiros episódios –, chega e, como ironia mórbida, transforma a humanidade em criaturas harmoniosas, colaborativas, sorridentes. Monstrinhos zen. É quase engraçado perceber o quanto isso me soa familiar. Um paralelo com a nossa realidade talvez seriam aqueles sempre prontos pra dizer que você está reativo, defensivo, agressivo, quando na verdade só está… vivendo e sentindo como uma pessoa saudável e normal faria. Gente que fala manso como quem carrega uma arma invisível contra você. Não à toa, meu apreço por essa doutrina é, digamos, bastante pouco quisto. A gentileza, no entanto, é algo que defendo mesmo sabendo que até isso pode nos tornar ingênuos aos olhos errados.

Carol, imune ao contágio até o momento, reage com a honestidade que ninguém mais parece capaz de sustentar. E eu entendo. Porque quando o mundo inteiro decide ser "agradável", a autenticidade vira crime. Você passa a existir na contramão. Um Han Solo num planeta de Ursinhos Carinhosos mutantes. E Pluribus captura isso com uma precisão desconfortável, essa felicidade imutável. Gilligan filma o colapso da humanidade como se filmaria uma propaganda de margarina, ao mesmo que transforma o banal em épico. A simples assinatura de livros num evento literário: exaustiva. A tentativa de falar com alguém que insiste em não atender o telefone: desgastante. E a logística de um supermercado vazio que, de repente, ressuscita para servir aos caprichos da protagonista; é como a série transmite os sentimentos de Carol.


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O que mais me intriga é como a série transforma a antipatia de Carol em virtude. Ela é impermeável ao tal "bom comportamento", e talvez seja por isso que ainda consiga perceber a monstruosidade escondida no verniz da harmonia. A felicidade, quando imposta, torna-se só outra forma de violência. Um vírus, mesmo. Um que exige que Carol se traia para ser aceita. E aí talvez esteja o ponto mais incômodo da séire: a ideia de que, às vezes, ser humano é justamente ser desagradável. Ser falho. Ser excessivo. Ser um pouco difícil de digerir. A vida real não opera em modo mindfulness, e a ficção de Gilligan entende isso.

Por enquanto, o que permanece desses três episódios é uma pergunta que pesa mais que qualquer reviravolta: quanto custa ser autêntico quando o mundo inteiro decidiu ser agradável demais? Carol resiste, trincada por dentro, tentando não ceder ao novo contágio social. Mas não sabemos o quão sozinha ela realmente está. O embate central não é apenas sobreviver aos novos "pacíficos", mas sobreviver ao risco de tornar-se um deles. Porque, se um dia encontrarem um jeito de infectá-la com o vírus da paz, e ela enfim baixar a guarda, a história não termina: ela simplesmente deixa de existir.



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A série Pluribus estreou com dois episódios em 7 de novembro e segue com lançamentos semanais, exclusivamente na Apple TV+, com seu primeiro episódio disponível gratuitamente para possíveis novos assinantes.

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