Amores Materialistas é pertinente, mas por que não engata? (Comentário com Spoiler)

Eu ri com os diálogos de Amores Materialistas, novo filme escrito e dirigido por Celine Song ("Past Lives"). Frases como: 'O amor é a última religião, o último país, a última ideologia existente', 'Eu não sei se gosto de você ou dos lugares que você me leva', ou ainda 'Eu não quero te odiar por você ser pobre. Mas, neste momento, eu o odeio. E isso me faz odiar a mim mesma!' já poderiam encerrar esta resenha, de tanto que fizeram doer minha barriga... mas sigo acreditando valer a discussão que essas falas suscitam. Rindo ou não, é impossível ignorar o quanto esse filme tenta levantar questões relevantes.

Nenhum filme moderno sobre encontros na maior idade, se é que me lembro de mais algum, foi capaz de acender tantos alertas sobre o amor arranjado, majoritariamente tóxicos, e os labirintos afetivos que, convenhamos, não são exclusividade do nosso tempo. A própria abertura do filme, com o sonho da protagonista, Lucy (vivida por Dakota Johnson), sugere que esse sentimento – o desejo por amor romântico – é antigo, enraizado, mas também carregado de algo que se transforma conforme o cenário muda, especialmente quando entra em cena o materialismo. Só que o que começa provocador, com muito potencial para desconstrução, termina de joelhos diante do velho ideal do amor romântico. Mas por que, mesmo sendo esse o pretexto do filme, ele não engata?
Ao acompanhar os diálogos, principalmente os de Lucy, a protagonista, fica evidente o desalinho. Comento sobre cada um deles mais adiante. Os diálogos são contraditórios (ainda assim em perfeita sintonia com o tema), mas há tensões não digeridas pela narrativa, especialmente quando Lucy começa a testar os limites entre afeto e conveniência, sendo disputada por dois homens com perfis bem distintos. Um deles, Harry (Pedro Pascal): rico, estável, do tipo que considera uma vergonha ver casais brigando em público. Ele até diz, com convicção, que nunca viveu isso. O outro, John (Chris Evans): o ex-namorado pobre com quem Lucy já discutiu em público. Ele é a lembrança do "amor romântico" que o filme quer defender. Mesmo que de forma capenga.

E é aí que Lucy começa a me perder pro cômico... 

Antes de questionar os homens ao seu redor, que são bem suspeitos ao meu ver – seja um deles por parecer obcecado pela ex, e o outro por operar as pernas pra ficar mais alto –, é preciso entender por que Lucy parece tão contraditória. Talvez com algum esforço eu chegue a uma conclusão plausível. Pois, em um momento, ela está saindo com Harry, que a trata bem, com regalias. E, segundo ela mesma diz, 'não gosta dele por ele ser rico, mas por fazê-la se sentir valiosa.' No instante seguinte, afirma que não o ama, e corre para os braços do ex com a justificativa de que, segundo sua matemática emocional, casar-se com Harry seria um bom negócio, mas que também precisa do 'amor na mesa'.

Me pergunto se o que Lucy busca seja afinidade. Pois, ela se sente inadequada com Harry; o suficiente para dispensá-lo antes mesmo de começar a sentir algo mais profundo por ele. Mas, ao voltar para o ex, logo em seguida... para mim isso entra em conflito com o motivo da briga entre os dois sobre ele ser pobre, e como isso a torna infeliz. O filme nos mostra que, ao lado do ex, Lucy não se sente valiosa, certo? A matemática fecha, correto? Pois, é por essas e outras contradições que eu estranho ainda mais essa personagem. Deve haver algo entre eles que a faz voltar... Será o fato de John ter avançado um pouco na vida? Ele está diferente de outrora? Para Lucy, ele ainda é o mesmo de sempre – não mudou – como ela diz noutro momento. Então não sei.


"Are we soulmates?"


Ao lado do ex, Lucy se sente financeiramente desvalorizada, certo? A matemática fecha? Talvez não emocionalmente, e é ai que a dúvida aumenta. Presumo que ela corre para o ex por se sentir igual a ele. Ou a sua predileção carrega alguma toxicidade? Ela volta para ele por se sentir superior, e isso também a faz se sentir valiosa? Afinal, ela mesma se diz péssima por nutrir tais pensamentos negativos sobre ele. Ela se considera uma pessoa péssima. Mas ao ser questionada sobre sentir pena dele ela nega, o que não me ajuda a entender o que move Lucy em sua direção. Volto a questionar suas motivações e o loop se torna infinito. 

Em seu trabalho de casamenteira, Lucy aborda suas clientes mulheres com a narrativa de que 'todos queremos alguém para envelhecer juntos...' o que, além de ser uma jogada de marketing para atrair a clientela, também pode ser um desejo do seu inconsciente. Pensando nisso, na possibilidade dela querer envelhecer ao lado de alguém que, assim como ela, também deverá almejar o mesmo destino conscientemente, chegamos ao desejo de John – que diz em dado momento que 'quando ele olha para Lucy, enxerga rugas, cabelos grisalhos e um filho que se parece com ela...' ou seja: AFINIDADE. Os dois se amam por afinidade. 

Fim do loop infinito. 
Mas por que essa escolha torna o filme tão raso e previsível?

John conhece Lucy muito bem, obrigado! A ponto de saber o que ela gosta de beber: Coca-cola e cerveja. Um pedido de paladar imaturo, pouco refinado, simplista, e compatível com o status social dos dois. Talvez, se o filme entregasse cenas com Lucy e John no passado, além da briga no meio da rua que me faz rir, algo que mostrasse o que os une de verdade, e por que devemos  acreditar na "inevitabilidade" de sua união – eu conseguiria até torcer por eles. Mas a relação dos dois é tratada com casualidade, fazendo com que o suposto "amor" soe mais como uma memória vaga do que como algo real. A conexão é assumida, não sentida.


"I’m gonna die alone. Or get a rich husband."

Outra das falas que coloca Lucy contra si mesma está no começo do filme, quando ainda não temos sinal de John. Lucy diz a uma colega de trabalho (imagem) que 'morrerá solteira, a menos que arrume um marido rico.'. A princípio, a frase soa como uma piada ácida, mas passa a carregar outro peso conforme acompanhamos suas escolhas – que caminham justamente na direção oposta do discurso de independência e materialismo. O desfecho, portanto, parece insustentável – especialmente porque o filme, hora aponta para a desconstrução do amor romântico por meio da lógica algorítmica e da frieza matemática, mas no fim opta por um caminho que contradiz esse percurso sem justificar a mudança. É como se a narrativa escolhesse, entre possíveis desfechos, justamente o menos convincente.

Noutra cena, que me confunde sobre o verdadeiro caráter da protagonista, Lucy tenta convencer uma de suas clientes, prestes a desistir do casamento, de que 'nenhum motivo para se casar é bobo'. A cliente toma coragem e admite que só quer se casar porque o noivo gera inveja na irmã. Um motivo mesquinho, que nada tem a ver com amor. Lucy responde dizendo que isso é válido, porque 'significa que o noivo em questão faz sua cliente se sentir valiosa.'. Surpresa, a cliente concorda e se casa. Ou seja, a mesma narrativa que Lucy aplica profissionalmente, usando a lógica do valor como construção de autoestima, é justamente o que ela parece abandonar na própria vida.

Pela forma como o filme é montado, ao aparecer de repente em cena, sem um passado explícito, John é retratado como "o outro", interrompendo o início de algo promissor entre Lucy e Harry durante o casamento da cliente mesquinha. E continua sendo "o outro" com quem a protagonista decide reatar – mesmo sem que o filme ofereça base suficiente para sustentar essa escolha. De onde Lucy conhece John, e há quanto tempo se conhecem? O filme sugere em diálogos que ambos possuem interesse em artes cênicas. Mas, o que vemos se desenvolver, de fato, é o começo da relação entre Lucy e Harry. É com ele que Lucy compartilha momentos íntimos e estabelece uma troca afetiva. John, mesmo fazendo parte do passado (oculto) de Lucy, permanece à margem por um bom tempo no filme.

Acho curioso que eles dois, assim como em Past Lives, compartilham uma relação supostamente antiga, onde, nesse caso, já sofreram juntos os percalços de uma relação em frangalhos. Podemos supor que havia intensa intimidade. O envolvimento entre eles constituem um pacto de classe, um reflexo de seus status – criando um paralelo com o casal pré-histórico dos sonhos de Lucy –, mas há um discurso que corre ao lado: o da independência, do cálculo, da liberdade feminina – e que, no entanto, termina na velha fórmula do amor romântico. Quase um anticlímax ideológico. O que funciona em Past Lives para mim (a impossibilidade afetiva de um amor antigo) aqui me faz querer rolar os olhos nas orbitas. Mas eu nem chego a rolar porque me dá preguiça.


"So this is it?"

E para onde vai o personagem de Pascal? Ele simplesmente desaparece da fórmula quântica; sem confronto, sem consequência, como se sua presença intensa fosse apenas um desvio narrativo descartável. Cheguei a acreditar que Lucy o direcionaria à trajetória da cliente que sofreu assédio; outra mulher, outra camada, outra possibilidade. Mas nem pra isso ela serviu, tadinha. A partir da subtrama da cliente assediada, o filme flerta com o suspense. E eu, francamente, adoraria ver Celine Song mergulhar de cabeça nesse território em uma próxima oportunidade, porque ali ela inicia algo interessante, cria tensão, mexe com a gente, muda o foco.

Seus diálogos têm a elegância de um romance de época. Hora são ácidos como vinho barato servido em copo de cristal, hora são dignos de nota. E as cenas em Nova York, com planos abertos e vazios, belíssimas, parecem carregar de volta sua alma teatral. Talvez me lembre Sex and the City? Não é um filme, mas, enfim. É o que me lembra quando o tema é encontros na maior idade. Só que aqui, o olhar é de quem ainda acredita que o amor, mesmo cercado por algoritmos, continua soberano. Só faltou me convencer disso, desta vez.






* * *



Nota Crítica:

Amores Materialistas seduz com diálogos afiados, mas hesita em desenvolver suas ideias a uma resolução verdadeiramente satisfatória. Se Lucy fosse um dos "perfis de relacionamento" que ela mesma avalia, seu índice de compatibilidade com o público seria instável. Em alguns momentos, Lucy faz Anastasia Steele, de 50 Tons de Cinza, se encolher de vergonha.

Nos comentários da review não autorizada, em meu TikTok pessoal, comentei que esse filme podia muito bem se chamar AMORes PRIMITIVOs. Pois, na cena, quando Lucy pede coca-cola e cerveja durante o primeiro contato com Harry, é como se John demarcasse território ao saber exatamente o que ela vai pedir. 🫩 Vai vendo...

Um comentário:

  1. Será que a diretora recebeu pressão pra entregar resultado pq eu tbm senti esse filme vazio e simplista assim sem o molho!!!!!

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