Superman do Cinema e Um Detalhe Narrativo Que Faz o Filme de James Gunn [Comentário com Spoiler]

Como espectador casual dos filmes do herói exilado, eu sempre achei difícil acreditar na parte alienígena de sua origem. Por mais desproporcional que seja a sua capacidade física aos padrões humanos. Faltava algo além dos poderes, da capa e da origem extraterrestre, algo tangível, muito nosso, que o tornasse realmente estranho ao meu entendimento de estrangeiro.

Assim como no comentário de The Batman em meu antigo Twitter, onde eu digo que, pela primeira vez, enxerguei os "animais" e sua alegoria quase teatral... em Superman, dirigido por James Gunn, o idioma kryptoniano também aparece pela primeira vez não para embelezar um monitor ou dar um toque exótico: ele cria desinformação, ameaça e, consequentemente, medo. Ele é usado por Lex Luthor como arma, para fazer o mundo desconfiar e temer a origem do herói. Superman não entende por que estão com medo dele – e nós, espectadores, também não entendemos o que está sendo dito. E é nessa fricção, nesse ruído, que Gunn finalmente encontra o alien ideal.





"O Homem de Aço" (2013) – imagem de divulgação / Warner Bros. Pictures

Enquanto o filme de 1978 toca levemente na superfície do estranhamento, a primeira vez que arranham a superfície é em Homem de Aço, do Zack Snyder. Toda a abertura do filme é focada em Krypton, e pela primeira vez o planeta de origem do herói ganha corpo, visual, cultura própria, com códigos estéticos e sociais muito diferentes da Terra. Seguindo uma estética tecno-biológica quase lovecraftiana; uma sociedade altamente controlada, com nascimentos programados e papéis sociais predeterminados; num planeta à beira da destruição por seus próprios excessos. Ou seja, uma civilização decadente e sufocante.

Essa primeira tentativa de estranhamento também explica que os poderes do Superman na Terra surgem justamente por causa dessa diferença: a atmosfera, a gravidade, o sol amarelo. Ou seja, os kryptonianos não eram deuses no próprio mundo, só se tornam sobre-humanos quando deslocados. Isso, de certa forma, reforça o sentimento de que Kal-El é um corpo estranho, alguém que não pertence, que só tem seus dons porque está fora do lugar. É uma forma sutil de dizer que ele é um estrangeiro até no próprio corpo. Esses dois pontos do filme do Snyder sempre me pareceram interessantes, e acho fascinante, mas ainda não via o alienígena; o estranhamento, superficial, se perdia na conveniente tradução.

No filme atual, além de não atuar sozinho, em um mundo de meta-humanos já estabelecido, Superman não é apenas um herói formado e popular. Sua jornada deixa de ser só sobre salvar o mundo e passa a ser sobre ser compreendido por ele, pois há um desencontro na tradução da língua-mãe, um senso de injustiça latente: o medo coletivo alimentado por uma língua que ninguém entende. E isso transforma sua batalha, não contra vilões ou mísseis, mas contra uma visão distorcida de si mesmo. Mais do que qualquer raio laser ou pirotecnia, é essa batalha por reparação identitária que torna a sua parte alien crível para mim. 


"Superman: O Retorno" (2006)  – imagem de divulgação / Warner Bros. Pictures

O Superman passou décadas no cinema sem transparecer o estranhamento que temos agora. No clássico de 1978, dirigido por Richard Donner, ele é praticamente um semideus, cheio de valores perfeitos, quase um messias cristão. A origem kryptoniana ali não é algo que separa, mas que eleva; soa mais como alegoria celestial do que como uma diferença cultural real.

Já nos anos 2000, em Superman Returns, ele volta à Terra como uma figura melancólica, mas ainda inalcançável. Seu conflito parece mais emocional do que existencial. Ele sofre por ter deixado Lois, por não saber seu lugar afetivo no mundo. É o Superman mais triste e distante que tivemos no cinema. Não há tensão cultural, nem choque de identidade. Seu retorno não questiona quem ele é, mas se ainda é amado. O filme trata mais da ausência de um ídolo do que da presença de um alien. Ele segue sendo neutro, idealizado, sem traço de alteridade. Não há idioma, não há ruído. Há apenas um símbolo tentando reconquistar sua função simbólica.

Mesmo quando Snyder, anos depois, tenta reimaginar o personagem como alguém dividido entre dois mundos, o foco ainda está na grandeza, no peso de ser um símbolo. Não há estranhamento. Não há desconforto real em sua presença. Gunn traz alguns elementos inéditos aos filmes nesse sentido. A diferença agora não é apenas narrada – ela é sentida. Eu, como público, quero saber o que os pais de Kal-El dizem naquela mensagem holográfica. Mas a falta de tradução direta me obriga a reconhecer como é, de fato, lidar com o estrangeiro. De forma sutil, até mesmo inusitada para mim, que fiquei genuinamente instigado com esse pequeno notável detalhe narrativo sobre tradução ou falta de..., o filme nos transporta para a sua realidade, fazendo-nos sentir o estranhamento desse ser estrangeiro e a questionar sua língua-mãe.

Com esse detalhe, o filme leva o estranhamento a um nível mais profundo – cava uma cratera em vez de arranhar a superfície: Kal-El e sua família são objetos de medo não por quem ele é, mas por não se saber o que ele quer dizer. O Superman aqui pode soar estranho até mesmo ao fã do herói nas telas, que talvez nunca o tenha visto interpretado dessa forma tão atualizada. Ele não é apenas o outro porque veio de longe. Os seus pais falam uma língua que ninguém entende, carregam uma presença que ameaça justamente por não se explicar. Nesta nova interpretação, o alienígena deixa de ser apenas uma questão biológica e passa a ser também política, cultural: algo que incomoda, que divide, que escapa à tradução.

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